quinta-feira, 10 de maio de 2012

Conto - Cartas no Escuro

Saudações,leitores (ou,pelo menos,o punhadinho que talvez tenha sobrado...).
Queria pedir desculpas por minha demora em postar algo novo.Eu estava sem internet em casa,de modo que me era impossível postaralgo decente.Fiquei três meses assim,mas agora que tenho internet em casa novamente,voltarei a postar.
Aqui,venho oferecer algo um pouco diferente...é um conto,escrito por mim mesmo,tendo como cenário os Mitos de Cthulhu,um mundo de horror criado pelo escritor norte-americano Howard Phillips Lovecraft,que narra a existência de seres antigos,para os quais a humanidade,como nosso planeta,é uma existência tão insignificante quanto um grão de areia.A partir dessas histórias,também foi feito o RPG Call of Cthulhu (Rastro de Cthulhu no Brasil),um dos mais célebres RPG's de horror entre todos.
Então,sem mais delongas,aqui vai:



CARTAS NO ESCURO

Ainda não tenho plena certeza do que houve. Não sei se culpo minha família, meu irmão, ou até minha própria ascendência. Após o terrível incidente que me faz pensar e refletir com uma frieza horrivelmente calculada, algumas coisas tem ficado mais claras. Parece que, finalmente, estou crescendo, e abandonando meu jardim encantado para ver como realmente o mundo é.
Lucas não era, realmente, meu irmão. Nos conhecemos pela internet, em um site aonde compartilhávamos crônicas e narrativas escritas por nós mesmos. Julgando por seus escritos, apesar de sua idade adolescente, ele tinha muito talento e sensibilidade artística, que o levariam longe. Ele também sempre elogiou meus textos, dizendo que eram cativantes como se houvesse algo de sobrenatural neles. Hoje, não sei se entendo isso como um elogio, embora, à época, tanto eu como ele não tivéssemos a mínima ideia da verdade que poderia existir em suas palavras.
Começando em discussões agradáveis, logo compartilhávamos experiências de nossas vidas. Éramos confidentes um do outro. Mas, na verdade, não era nada muito profundo. Ele tinha 17 anos à época, e eu, 13. Normalmente ele desabafava comigo sobre namoradas e desilusões amorosas que sofria. Porém, reconheço que eu desabafava muito mais com ele do que ele comigo. Costumava desabafar sobre a escola, aonde eu fazia poucos amigos verdadeiros, a maioria parecendo se afastar de mim; sobre minhas próprias desilusões amorosas, que me frustraram diversas vezes, quase me fazendo abandonar toda e qualquer esperança; e sobre minha família, que praticamente me mantinha presa em casa, como se tivesse medo que algo de fora me contagiasse. Ou o contrário, eu penso agora.
Com o tempo, passamos a nos referir como irmão e irmã. Eu nutria um carinho imenso por ele, e sentia que era retribuída. Cada palavra carinhosa que surgia escrita na tela de meu computador me confortava e me fazia feliz.
Um dia, porém, meu pai descobriu sobre minhas correspondências, e me proibiu de continuar minha amizade. Apesar disso, embora com mais dificuldades, eu ocasionalmente achava um meio de fugir dessa restrição e conversar com Lucas. Ele, por sua vez, se indignara com o que aconteceu, chegou a pedir para conversar com meu pai de homem pra homem (na verdade, Lucas havia acabado de fazer 18 anos e, embora negasse, suspeito que isso lhe dera uma ligeira arrogância) para provar que não possuía nenhuma segunda intenção quanto a mim, e vivia apenas desejoso de continuar sendo meu irmão. Lucas chegou a enviar mensagens para meu pai, mas meu pai nunca respondeu suas mensagens, e também nunca comentou nada comigo a respeito disso.
Apesar disso, ocasionalmente ainda achávamos chances para conversar, mesmo escondidos. Em uma tarde, ele me mandou uma mensagem extremamente urgente, pedindo para desabafar comigo. Ele disse que sua namorada recente acabara grávida, e que ele não fazia ideia do que fazer. Afinal, à essa altura, ele possuía 19 anos, e ela apenas 17.
Sensibilizada, dei apenas os conselhos que qualquer pessoa daria, para ele assumir seu filho, nunca fugir de suas responsabilidades, e continuar lutando pelo melhor em sua vida.
Após esclarecido esse ponto, começamos a falar de coisas banais. Entre uma coisinha ou outra, ele me disse que havia começado a se interessar muito pelos escritos do autor norte-americano Howard Phillips Lovecraft. Era um renomado escritor de histórias de horror, que, em uma mistura de terror com ficção científica, falava bastante sobre uns certos ancestrais da Terra, deuses monstruosos vindos de outros planetas, que jogavam com a vida da humanidade como se fossem brinquedos, e dominavam tudo a seu redor.
Nesse momento, minha mãe veio por trás de mim e me flagrou conversando com ele.
Achei que receberia uma bronca e um castigo, e que eliminariam todo e qualquer meio de comunicação que me permitiria conversar com ele. Porém, a expressão de minha mãe mudou ao ler as mensagens na tela, que citavam os nomes “Lovecraft”, “Cthulhu” e “Yog-Sototh”. Ela tremeu violentamente, mas não de medo ou de indignação, como eu normalmente pensaria. Parecia mais algo como se fosse um alerta primitivo, semelhante a um lobo eriçando seu pelos, prestes a se atirar a uma presa.
Então, ela pediu para ler o resto da conversa. Embora não me agradasse muito, eu a permiti, de modo que ela leu tudo, desde o desabafo sobre a criança inesperada até as minhas queixas sobre uma colega de escola que começara a me difamar por outras turmas, e, finalmente, as citações dos mitos de Cthulhu que Lucas me mandou.
Após terminar de ler, ela novamente tremeu com violência. Porém, ao final disso, ela pareceu se acalmar, e, para minha completa surpresa, disse que eu poderia voltar a conversar com ele.
Me senti muito feliz com isso, e Lucas também retribuiu minha felicidade, quando eu lhe contei sobre isso. Eu não entendia a súbita mudança de ideia de minha mãe. Concluí, no fim, que lendo sobre o que Lucas concluíra sobre a paternidade chegando tão prematuramente, me prometendo que seria responsável e daria toda a felicidade do mundo à criança que viria, minha mãe entendeu que era um bom rapaz, que não tentaria me fazer mal. Uma explicação manca, pois ela e meu pai já haviam visto outras conversas minhas com ele, e sempre transparecia pelo texto que era um rapaz responsável e honesto, que não bebia, fumava ou coisa parecida, e que nunca teria segundas intenções quanto a mim. Porém, era a única que me ocorria. Nunca pensaria que algo banal, como o interesse por um autor diferente, fosse ocasionar uma reviravolta tão grande para nós.
Mais tarde, minha mãe conversou com meu pai a sós, e, após isso, meu pai me disse que lamentava os mal-entendidos que haviam dificultado tanto que continuássemos conversando esse tempo todo. Disse que eu estava permitida de conversar com ele sempre que quisesse.
Diante disso, meu coração quase explodiu de alegria. Meu pai, inclusive, sugeriu que passássemos a conversar usando o correio de papel, ao invés dos e-mails e bate-papos da internet. Ele explicou que, como Lucas em breve seria pai, teria que cortar os gastos excessivos, como a internet. Portanto, seria bom que fôssemos nos acostumando a conversar por cartas. E também, disse meu pai, o correio de papel exerce mais fascínio e expressividade que as palavras digitadas atrás da tela de um computador.
Lucas concordou com isso com a maior felicidade do mundo. Então, passamos a nos corresponder por cartas.
Passaram-se cerca de dois anos. À essa altura,eu já era praticamente uma mulher, com 17 anos, e ele, 21. Nesse meio-tempo, a filha dele nasceu, recebendo o nome de Letícia, mas ele e sua namorada haviam terminado, de modo que Lucas ficava com sua filha apenas nos fins de semana. Ele me mandou algumas fotos, e era comovente vê-lo com o rosto cheio e feliz, carregando a filha no colo em parques, zoológicos e circos.
Em todo esse tempo que passou, tanto meu pai como minha mãe continuaram se interessando sobre minhas conversas com Lucas. Perguntavam, ocasionalmente, como ele estava, e, de vez em quando, perguntavam sobre seu peculiar gosto por leituras.
Nesse tempo, a curiosidade de Lucas por Lovecraft não arrefeceu: muito pelo contrário. Lucas me escrevia sempre sobre os contos que havia lido, e sobre pensamentos e teorias que lhe ocorriam à mente, ideias que, por vezes, tiravam seu sono à noite. Porém, eu nem desconfiava que isso fosse algo importante. Tratava o assunto como um qualquer para uma boa leitura ou discussão, e só.
Até que, em uma carta, ele me disse ter conseguido, para seu completo delírio e fascínio, um exemplar do Necronomicon, o livro tão citado nos contos de Lovecraft. Tratava-se de um livro de informações e descrições terríveis envolvendo os seres dos mitos, descrevendo e citando os terríveis nomes de Azathoth, Nyarlathotep, Cthulhu, entre outras entidades que podiam roubar a sanidade de um homem com um simples vislumbre de toda sua não-existência. Escrito pelo insano árabe Abdul Al-Hazred, era, em um sentido distorcido e corrupto, como se fosse a Bíblia dos Deuses Antigos.
Ele contou que o livro era completamente aterrorizante e impressionante, exercendo um fascínio e um temor tão grande que, embora normalmente fosse um rápido leitor, o obrigava a ler apenas três ou quatro páginas por dia, no máximo, e essas poucas páginas bastavam para roubar seu sono à noite.
Comentei isso casualmente com minha mãe no dia seguinte, enquanto estava escrevendo minha resposta. Para minha surpresa, o mesmo tremor que eu testemunhei quando ela viu pela primeira vez ele citando os nomes de Lovecraft e Yog-Sototh se apossou dela. Porém, em uma intensidade tremendamente maior, de modo que ela chegou a derrubar a travessa de comida que estava segurando no momento. Um tanto surpresa, perguntei a minha mãe se estava tudo bem, mas, sem me dar uma explicação, ou limpar a lasanha que se espalhou por todo o chão, ela saiu, indo telefonar diretamente para meu pai. Completamente confusa com isso, esperava apenas uma explicação.
Então, minha mãe voltou e pediu para que, em minha próxima carta, eu escrevesse dizendo que nós duas iríamos visitá-lo.
Imediatamente, fiquei completamente aturdida. Nunca havíamos nos visto pessoalmente, e a distância era razoável, pelo menos três horas de avião. Porém, ao mesmo tempo fiquei muito feliz, pois era um sonho antigo que nos víssemos pessoalmente, um sonho que nunca havíamos conseguido realizar.
A resposta veio apenas dois dias após minha carta, onde Lucas dizia que ficaria muito feliz em nos receber, e que ansiava muito por nos conhecer. Pouco tempo depois, nós fomos, com roupa suficiente apenas para uma viagem rápida. Nossa viagem seria no sábado, e no domingo já estaríamos de volta.
Minha mãe permaneceu completamente silenciosa durante a maior parte da viagem, embora, ocasionalmente, eu percebesse o tremor se apossar dela novamente. Não entendia bem a explicação desse fenômeno e, por alguma razão, eu pressentia que havia algo errado nessa história. Porém, deixando-me guiar pela racionalidade, eu ignorava os aspectos sobrenaturais que poderiam existir nos acontecimentos, e apenas ansiava por encontrar meu irmão, após tanto tempo.
Chegamos, enfim, à sua casa. Uma residência humilde, uma casa nos fundos de outra, com apenas três cômodos, e, na verdade, muito bagunçada, contendo mais livros do que qualquer outra coisa.
Ele veio nos recepcionar levando sua filha pela mão, e tive uma desagradável surpresa ao constatar que ele estava magérrimo e com olheiras profundas, como se não se alimentasse ou dormisse direito há semanas. Sem dúvida, a aparência de alguém doente.
Porém, sorri quase de orelha a orelha, e corri para abraçá-lo. Porém, ao passar os braços em volta de seu pescoço, senti nele o mesmo tremor que já havia visto em minha mãe. Ele desfez o abraço pouco depois e me encarou com olhos arregalados, para minha total surpresa. Porém, após esse momento, ele deu um sorriso fraco e me abraçou, dizendo que estava muito feliz em finalmente conhecer sua Maninha, como ele sempre me chamava. Quando me abraçou, senti novamente o tremor violento em seu corpo, dessa vez maior que o anterior, mas não comentei nada.
Lucas cumprimentou minha mãe e nos convidou a entrar. Na sala que fazia a vez de sala e estar e cozinha, nos sentamos no único sofá que havia na casa, enquanto a pequenina Letícia se deitou no chão e voltou a fazer o que estava fazendo antes, rabiscar com giz de cera algumas folhas de papel espalhadas pelo chão, enquanto Lucas fazia um café.
Então, Lucas veio nos oferecer o café, dizendo que havia comprado apenas para nós, pois ele mesmo odiava café. Minha mãe lançou um longo olhar à xícara, e, após um momento de hesitação, bebeu um golinho. Então, após isso, voltou a tomá-lo, enquanto Lucas se sentou em uma cadeira que havia por ali.
Eu e ele começamos a conversar sobre pequenas coisas do cotidiano, ele me contando sobre seu trabalho em uma locadora próxima à faculdade aonde cursava Filosofia, eu comentando sobre meu sucesso no vestibular da faculdade, aonde, em breve, começaria a cursar Letras.
Até que, interrompendo de súbito nossa conversa, minha mãe disse:
 - É verdade que você possui um exemplar do Necronomicon?
Um silêncio pesado tomou conta do ambiente. Lucas tinha uma expressão estranha, oscilando entre o medo e o despeito, ao responder:
- Sim. Estou quase terminando de lê-lo.
- Já está terminando? É uma surpresa que ainda esteja são o suficiente para trabalhar e falar racionalmente.
Eu acompanhava com os olhos a estranha discussão, sentindo uma tensão extraordinária no ambiente, como se houvessem faíscas envolvendo Lucas e minha mãe. Não entendia bem o que era aquilo, tampouco entendia a importância do exemplar de um livro fictício, possivelmente feito por fãs de Lovecraft.
- É melhor que não termine de lê-lo. Em vez disso, por que não o passa para mim e acaba de uma vez com seu sofrimento?
Lucas hesitou. Por alguns segundos, encarou minha mãe ocultando com assustadora firmeza o seu medo. Enquanto duraram esses segundos de coragem, respondeu:
- Não tenho intenção de entregá-lo a ninguém. Depois que terminar de lê-lo, irei queimá-lo. Basta de Cthulhu, Nyarlathotep e Yog-Sototh.
Isso me surpreendeu mais ainda. Em carta, ele já me falara diversas vezes de seu amor pela leitura, considerando o livro algo sagrado, que merece todo o respeito do mundo, não importando qual livro seja. Agora, falava com toda a naturalidade que iria queimar um livro. Mesmo que ele o considerasse profano, ainda assim algo não fazia sentido.
Outro ponto que me chamou a atenção foram os nomes que ele dissera. Era muito estranho, mas eu percebi que Lucas estava pronunciando erroneamente o nome desses seres, mesmo que eu nunca tivesse lido nenhum dos livros sobre qualquer um deles. Mais estranho ainda que, imediatamente, veio à minha mente a pronúncia que eu sabia ser a correta, e, embora eu a entendesse perfeitamente em minha mente, não percebia como falá-la oralmente. Era como se tais nomes não pudessem ser pronunciado com sons humanos.
- Não devia ter lido o livro. – continuou minha mãe – Como o tal Lovecraft, que escreveu o que não devia em seus contos. Mesmo que não o tenha lido completamente, você já sabe demais. É perigoso que continue vivo.
Isso me sobressaltou. Como assim? O que minha mãe quis dizer com isso? Perigoso que Lucas continuasse vivo? Por quê? Me ocorriam diversas perguntas, em um imenso turbilhão, mas não me sentia capaz de proferi-las em voz alta.
Lucas suava frio. Seu olhar, em um ritmo louco, se voltava ora para minha mãe, ora para Letícia, que, em sua inocência de criança, compreendia parte do que acontecia ao seu redor, fitando minha mãe e Lucas de olhos arregalados, abandonando seus rabiscos.
Então, minha mãe se levantou. No mesmo instante, rápido como uma pantera, Lucas correu até ela. Não sei se buscava acertá-la ou apenas tomar sua filha nos braços, ou talvez até os dois. Porém, em um único tapa com as costas da mão direita, minha mãe o derrubou no chão, enquanto Letícia começou a chorar. Estupefata, eu olhava de olhos arregalados para minha mãe e para Lucas, que, no chão, mantinha uma expressão mista de fúria e medo, como um rato acuado, prestes a ser engolido por uma cobra, mas pronto pra dar todas as forças de seu último suspiro em uma tentativa suicida de mordê-la antes de morrer.
- Onde está o Necronomicon? – perguntou minha mãe
Lucas continuava olhando de minha mãe para Letícia, atemorizado. Eram quase visíveis as engrenagens de seu cérebro trabalhando em um ritmo vertiginoso, tentando encontrar um meio de tirar sua filha de perto de minha mãe.
Então, por fim, rendido, Lucas apenas apontou a direção onde estava tal livro. Minha mãe, então, em um passo firme e arrogante, caminhou até tal direção. Sem pensar, lançando um último olhar a Lucas, que correra nesse instante e pegara Letícia no colo, acompanhei minha mãe. No meio dos muitos livros que haviam lá, entre obras de filósofos como Descartes, Nietzche, Platão e Kant, estavam diversos livros de Lovecraft, com capas de ilustrações de monstros horrendos que, por alguma razão, não me davam o mínimo arrepio.
Entre manuais de RPG, livros didáticos e até histórias infantis, minha mãe enfim tirou do meio um livro grosso de capa dura, de aparência velhíssima, como se datasse de centenas de anos atrás, as páginas amareladas, a capa desbotada em cuja parte superior estavam caracteres estranhos, diferentes do alfabeto comum, mas que, por alguma razão, eu consegui ler facilmente: Necronomicon.
Minha mãe sorriu. Porém, um segundo depois, seus olhos se arregalaram.
Lucas chegara por trás de nós, com uma espada japonesa que mantinha ali como ornamento, e, em um único e preciso golpe, cortou fora o braço de minha mãe.
Minha mãe berrou de dor, o sangue começou a jorrar, não vermelho forte, mas uma espécie de vermelho ralo e um pouco azulado, de cheiro forte e desagradável, enquanto ela caía no chão, urrando. Lucas recuperara um pouco da cor do rosto, e olhava com raiva para minha mãe caída no chão, enquanto eu apenas observava, lívida.
- Vá para o inferno! Até parece que eu vou deixar uma coisa dessas cair nas mãos de coisas como você! – urrou Lucas, em um surto de coragem
Então, Lucas ergueu a espada, prestes a desferir um golpe mortal em minha mãe. Nesse instante, alheia a tudo mais, agindo por puro instinto, agarrei seu braço, fazendo-o me olhar, surpreso.
- Lucas, por favor! Ela é minha mãe! – eu disse
Essa simples palavras mudaram completamente a expressão no rosto de Lucas. Seu rosto ficou menos tenso, menos transfigurado pela ira, mais calmo. Ele me fitou com uma expressão curiosa.
Uma lágrima escorreu por seu rosto.
Então, minha mãe, levantando-se rápida como um raio, com o braço que lhe restava, afundou a mão no peito de Lucas, abrindo um buraco pelo qual o sangue começou a jorrar. Meu irmão gritou de dor. Minha mãe, com a expressão vazia, sem se alterar, apenas deu um puxão, levando em sua mão o coração ainda pulsante de Lucas.
Meus olhos se arregalaram. Era tudo que eu não esperava encontrar quando viesse para vê-lo. Ele foi ao chão, desfalecido, uma expressão de pavor esculpida em seu rosto.
Sem acreditar no que eu testemunhara, apenas comecei a distinguir o choro de Letícia. Ao que parecia, Lucas a trancou no banheiro, para que não corresse perigo quando ele viesse tentar matar minha mãe. Minha mãe, então, começou a andar calmamente na direção da porta trancada. Adivinhei na hora o que ela pretendia fazer.
- Mãe... isso é mesmo necessário?
Sem mudar a expressão, minha mãe parou. Então, me olhou. Resmungando algo que não pude ouvir, ela apenas sinalizou para que continuássemos indo, após roubar uma jaqueta de Lucas, que repousava no espaldar da cadeira, para cobrir o toco de braço que lhe restara.
Eu mal começara a entender tudo que estava em jogo. Pensei até que restava alguma humanidade em minha mãe, por ter poupado a vida de Letícia, mas posteriormente soube que um acidente de carro levou a vida da menina, juntamente com sua mãe, seu padrasto e seu avô materno. Em outros tempos, eu poderia pensar que fora apenas isso, um acidente. Mas hoje, não mais.
Compreendi mais tarde que Lucas, por haver estudado muito sobre os Deuses Antigos, pressentira algo sobre minha mãe e eu, embora tenha sido apenas vinte minutos antes de sua morte.
Meu ancestral é um dos Deuses Antigos, por parte de minha mãe. Pode ser meu avô, meu bisavô, ou pode ser que esse meu ancestral tenha corrompido minha linhagem há muitos séculos atrás. Talvez seja Nyarlathotep, Cthulhu, Chaugnar Faugn, ou qualquer outro dos nomes que meu irmão conhecia tão bem. Minha mãe ainda não me disse. Disse que quis me levar com ela na viagem que tinha por objetivo tomar o Necronomicon e eliminar Lucas, tudo para analisar meu comportamento e minhas reações, mas que concluiu que eu ainda não estava pronta. Embora agora eu entenda um pouco melhor a verdade do mundo que me cerca, ainda sou completamente ignorante sobre a maior parte da existência. Ou da não-existência.
Entendi que não sou uma humana comum ao analisar meu consciente e subconsciente durante a viagem de volta, com minha mãe ao meu lado e o Necronomicon no meu colo. Pois, embora eu tivesse me surpreendido muito com tudo que aconteceu, no fim eu percebi que minhas emoções não se alteraram. Eu vi meu irmão ser morto diante de meus olhos, ouvi o choro de sua filha, mas não me senti horrorizada. Não senti pavor, nem me arrepiei diante de tal espetáculo de sofrimento e horror. Embora eu tivesse impedido que minha mãe matasse Letícia imediatamente, eu fiz isso apenas seguindo a lógica, e não a emoção, pois é provável que nem ver minha sobrinha morrendo diante de meus olhos me faria sentir horrorizada.
O mais próximo da verdade pode ser que eu sou descendente de um demônio. Mas mesmo essa expressão é otimista demais diante da aterradora verdade.



 Esse conto foi inspirado em um sonho que tive,apenas uma semana após eu ter lido meus primeiros Mitos de Cthulhu.Não sei se é certo perguntar se vocês gostaram,mas espero que tenham apreciado.
See ya

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